Ouvir o português de Portugal foi uma das melhores coisas da nossa viagem de férias no mês passado. Do Algarve a Lisboa e daí ao Porto, nos divertimos com a pronúncia rápida, vogais comidas como em Belém, Blém, o adeus em vez do tchau, a pergunta do freguês na mercearia, há pêssegos?, os ésses e os pronomes todos, as diferentes palavras e expressões, gira, casamento falhado, o tratamento formal, nunca antes fui tantas vezes chamado de senhor, o humor e a ranzinzice, dois lados da mesma alma. Também nos divertimos lendo a imprensa portuguesa. Os textos abaixo são do número 911 da revista semanal Visão. O primeiro texto é do colunista Ricardo Araújo Pereira (incluí apenas os parágrafos iniciais da coluna) e o segundo é do leitor Juventino M R Fonseca.
Talvez o leitor já tenha reparado num flagelo que assola a sociedade portuguesa. É o flagelo da sinceridade. Há um número alarmante de pessoas para quem a sinceridade é um atributo estimável. Tanto que, ao que tenho testemunhado com cada vez maior frequência, anunciam a despropósito e sem pudor a sua própria sinceridade, normalmente antes de uma observação desagradável. Funciona assim: "Eu sou sincero: essa camisa fica-lhe mal." Como é evidente, o proprietário da camisa fica duplamente amesquinhado: não só está mal vestido como se encontra junto de uma pessoa sincera. Os nossos defeitos parecem ainda piores quanto estamos na presença de alguém que é tão obviamente virtuoso. As pessoas com quem me dou sabem bem o que é carregar esse fardo.
É interessante reparar no modo como o autor deste tipo de frase é, em geral, atormentado pela sua própria nobreza de caráter. Outras pessoas teriam a desonestidade de elogiar aquela camisa, ou fariam um silêncio igualmente condenável. O sincero não pode, uma vez que é sincero. Não é desagradável, nem impertinente, nem descortês. É sincero. No fundo, o que está a dizer é: "Não há nada a fazer. Eu bem me esforço para não ser tão moralmente irrepreensível, mas não consigo. É a mais elevada dignidade que me obriga a dizer-te que tens maugosto." (...)
Acabo de ler na revista desta semana: "Como pôde um território ser 'descoberto' se já era habitado desde época imemoriais", e recordo-me que a pretexto dos 500 anos dessa "descoberta" vi nos telejornais manifestações no território brasileiro contra as comemorações e, particularmente, contra o termo "descoberta", defendendo o "achamento". Já na altura achei a constatação desprovida de sentido, pois o termo passou a ser utilizado precisamente com a chegada do Pedro Álvares Cabral a Terras de Vera Cruz, pois este significava "tirar a coberta de", ou seja, mostrar algo que estava escondido.